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10.12.05

A Quatro Mãos

“Jejichz obsah je chranen autorskym zakonem. Prepis, sirení, ci dalsí zprístupnování tohoto obsahu ci jeho cásti verejnosti.”

“Hoje os obstáculos são muitos para a moral do homem. Antecipadamente, sem pensar, correu nua e deitou-se na cama onde lia o francês esperto.” (Emil e Milos Koubek)



A escrita já existe há centenas e centenas de anos. Mas apenas em meados dos recentes anos 1960 o mundo pôde conhecer um trabalho tão brilhante quanto o dos irmãos tchecos Emil (1943-1974) e Milos Koubek (1945-1990). Pioneiros, os jovens da região de Pardubice, no coração do país então comunista, revolucionaram os padrões da literatura ocidental ao criarem um novo estilo a quatro mãos: em suas três obras – ali disseram tudo que havia para ser dito – cada um escreveu 866 páginas. Alternadamente.

Mentirá aquele que disser que os Koubek se amavam e se entendiam perfeitamente. Somente dessa maneira, julgariam os parvos, poderiam eles dois encontrar tamanha simbiose de pensamento e concatenação de idéias aparentemente desconexas. Mas a verdade é que escreviam conjuntamente, e não juntos. Odiavam-se. A propensão à genialidade compensava. A um bastava ler a página anterior e a história seguia, sempre com espontaneidade e fluidez. Não queria um saber o que o outro pensava, se havia algo planejado para este ou aquele personagem. O que os movia era o impulso de continuar.

Foi pouco depois de Emil deixar o curso de geologia da Universidade Nacional e de Milos entrar no primeiro ano do segundo grau – fora acometido por um distúrbio de atenção apenas minimizado com terapia ocupacional – que veio o primeiro livro: “As Antípodas de Richard Wagner” (1964). Aquilo que tinha começado dois anos antes como uma brincadeira de Emil para estragar um conto do irmão, iniciado e esquecido durante uma passagem pelo banheiro, transformara-se na pedra fundadora de uma nova literatura.

Os oito personagens da narrativa - Katrina, Dario, Vaclav, Tatyana, Franz, Heine, Johannes e Madeleine - se revezam nas páginas umas vezes pelas mãos de Emil e outras, por meio de Milos. As idéias tinham seu eixo sempre sob uma intrincada cadeia lógica hegeliana, com foco na estética gótica, nas perspectivas da televisão tcheca sob julgo comunista, na música clássica e nas memórias de Albert Speer, arquiteto da Alemanha nazista. Tantas informações sem a perda da espinha dorsal narrativa – a humanidade e a universalidade são o mote -- fizeram da obra um sucesso imediato na academia tcheco-eslovaca.

Além da densidade intelectual, fruto de muitas tardes na biblioteca de Kravonitzke, atraiu à intelligenzia do país comunista a habilidade dos irmãos de escrever alternadamente, desdobrando uma história em várias outras. Após publicada a primeira obra, Emil e Milos já eram conhecidos como “Os irmãos Scheherazade”, em uma referência à contadora de histórias das Mil e Uma Noites. A vantagem sobre a mulher, comentava-se, era o ímpio revezamento dos Koubek ao contar histórias. Sem perder o foco.

A fama dos contadores de história se confirmou no trabalho seguinte, “Como Tergiversar com o Pêndulo – a Insubordinação do Marechal Tito” (1965), na qual aparecem 33 personagens de cada um dos autores, um representando cada ano do século até então. Emil e Milos dissecam as Guerras Mundiais, os países não-alinhados às superpotências, a filosofia de Merleau-Ponty e Sartre, os pergaminhos, os tecidos chineses, os tapetes persas, as execuções na Revolução Francesa, o surgimento do cinema e a popularização da mirra. O texto foi aclamado rapidamente pela crítica cirílica, como não poderia ter sido diferente, apesar da limitada repercussão da mídia ocidentalóide.

A segunda obra dos Koubek, no entanto, expôs de forma indelével as divergências entre os dois irmãos, as mesmas que os levariam a encerrar os trabalhos conjuntos poucos anos depois. Emil defendia a organização social que levaria à Primavera de Praga. Já Milos advogava em favor da repressão dos direitos básicos dos tcheco-eslovacos pelos soviéticos, representantes do proletariado. O mais velho encantava-se com o balé. O mais jovem preferia a imprensa. O primeiro era fã de Beatles, e o outro só ouvia The Byrds. Sentiam que eram inconciliáveis, o afastamento definitivo se aproximava. Mas avaliavam que o trabalho ainda não havia sido concluído. Não tinham escrito nada que se pretendesse universal.

Foi esse sentimento que os moveu a escrever seu livro definitivo. O clássico “Deus, o Tempo e o Que Tiver Sobrado da Invasão dos Bárbaros” (1968) respondia a tudo que poderia ser perguntado com a história de 69 personagens, número que representa o equilíbrio entre yin e yang da simbologia coreana. De desafios da tecnologia, passando pela numismática, desembocando na existência de outros universos, Emil e Milos mostraram ao mundo que sua lógica surtia efeito e que já não havia nada a perguntar nem a responder.

(a continuar com resenha de “Deus, o Tempo e o Que Tiver Sobrado da Invasão dos Bárbaros”)

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6.3.05

Ficamos aqui como indicação

Blogueiros do Blog

Estava eu na fábrica clandestina de mesas de bilhar que tenho em sociedade com o Mautitzius Salvarese quando meu sócio me comunica a existencia desse valhacouto intelectual.

Como eu ia dizendo, a nossa fábrica de mesas de bilhar tem sede na Rua Cunhal das Bolas, Lisboa (confiram no mapa do Bairro Alto) que é a nossa porta de entrada para o Mercado Comum Europeu.

As bolas são de mármore retirado da tumba de Borges, em Genebra (sim é uma tiragem exclusiva para colecionadores e comercializadas junto com os charutos Davidoff). Mas, o que eu estava falando mesmo? Ah, Tucuman!!!

Um colega do Blog cita a bela San Miguel de Tucuman, que o Borges não deve ter querido ver nem amarrado. Cara pedante. Outro pedante, esse eu conheci, era o Bioy Casares.

É uma cidade bela (na altura de Santa Catarina/Brasil) terra de Mercedes Sosa e do escritor Tomas Eloy Martinez - um jornalista que se transformou em romancista.

Ele escvreveu Evita e o Romance de Peron e arrebentou. Lá também nasceu o arquiteto Cesar Pelli - autor daqueles dois prédios meio baixotes com um topo arredondado à margem do Rio Hudson, NY.

E para encerrar - no lado alemão savaresico - chegou um telegrama aqui do Thelonius Monk dizendo "cambada, o negócio é ler "Berlin Alexanderplatz", do Alfred Döblin.

Saudações marroquinas

J. (crítico de revista cultural que não se identifica por medo de retaliação)

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9.2.05

O beletrismo em afasia

Uma questão crucial foi levantada no Fórum Literário de Itabaiana, ocorrido na última semana de janeiro, quando, reunida, a nata da literatura popular brasileira se viu esmagada entre capa e contracapa de um só livro. Primeiro, a questão: “O que esperamos de um livro?”. Depois, o livro: “Tudo”, de Lampião Guarda-Beleza.

O meeting, que tinha tudo para não dar em nada, deu em “Tudo”. Foram quinze dias de reunião num pequeno casebre de taipa, no umbigo do agreste sergipano. Na primeira semana, alguns dos mais aclamados escritores da região empacaram entre falar sobre prefácios e posfácios ou silenciar. Cada mesa de debate parecia um programa de receitas do horário matutino da TV aberta. Ninguém anota nada, ninguém experimenta tutu algum, e o mediador é um guloso - das palavras, no caso –, egocentrado e cego aos bocejos. A malemolência durou até sábado, quando um senhor de botinas sujas e bermudão apareceu carregando quatro cópias de um número sigular da nossa literatura apequenada.

Enquanto todo mundo se perguntava, com discrição, qual era o sabor da bolinha de queijo, Lampião Guarda-Beleza, o senhor, deu a dica abarulhado: “Queijo”. O problema é que, para a grande maioria dos presentes, escrever um livro no Brasil atual que não seja um livro sobre o Brasil do passado virou trabalho de físico. Que livro seria esse? Daí a questão “O que esperamos de um livro?” ter sido levantada. Guarda-Beleza, talvez por ter chegado sutilmente atrasado, não se ateve a esta banalidade e pediu, por favor, me arrumem um microfone.

Com os quatro volumes sob os braços magros, levantou-se, virou-se para a platéia, pediu silêncio, ajeitou as vestes e avistou uma a uma as cadeiras com gente em cima: “Senhores”, começou, “vossa cruzada é vã, vossos escritos vãos, vossa reunião, porém, serve-me bem para apresentar-vos uma coisa útil.” Literalmente envergonhados, mas orgulhosos por terem reunido o pessoal, os presentes não ousaram roubar a palavra do distinto. Guarda-Beleza prosseguiu: “Há alguns anos que venho sentado numa escrivaninha velha, herdada de meu pai, o saudoso Sebastião Guarda, colando as páginas disso que carrego debaixo dos braços”. Uns e outros se olharam, olharam para os livros lacrados num plástico brilhante; sua curiosidade reluzia. “É um conto agigantado, do tamanho de um romance”, troçou. “Quero ter o prazer de distribuí-lo entre vocês”. O grupo de literatos atônitos assentiu engolindo saliva seca, com os olhos fixos nos volumes. Um douto virou-se para outro, disse: “Mas quem é esse sujeito?”.

Nascido no ano de 1951, em Formosa do Rio-Preto, um lugarejo no fim do sertão baiano, onde os moços não se importam de engatilhar sujeitos porque árvores frondosas ainda abrigam Matragas ao lado de corvos, Lampião Guarda-Beleza preferiu, desde pequeno, se esconder atrás de uma Olivetti DC-431 semi-automática. Nunca matou ninguém. Pelo menos não do jeito tradicional. Aos quatorze anos, com a ajuda de seu tio e editor, Pum Souza, foi mandado numa sege nordestina para Salvador.

Na capital baiana estudou no famoso Colégio Sapiência, onde surpreendeu professores e alunos ao recitar, decor-e-salteado, um clássico de Machado de Assis. Ninguém ousou, no entanto, chamá-lo de gênio. Nem de burro, anta ou mesmo maricas. Apesar da indiferença com que foi tratado desde que pisou na sotero(cosmo)politana cidade, letrado, porém mais matuto que uma peixeira, Guarda-beleza soube reconhecer seu talento no não-dito.

Aos dezoito anos, resolveu largar os estudos e comprou uma velha oficina tipográfica inglesa, sucateada em 1889. Aprendeu a manejar um desengonçado aparelho, tornando-se um profissional talentoso, mesmo que anacrônico. Era janeiro de 1970, um verão odioso no nordeste do Brasil, quando o jovem typographo e aspirante a escritor – pois ele sempre o fora – recebeu uma proposta de seu tio para lançar, encadernado e encapado com papel vermelho, algumas edições de seu diário, que mantinha desde que chegara ao mundo.

“Olha o que eu fiz esse dia” foi um sucesso retumbante entre os mais chegados da família Guarda-Beleza. Jocajoca Terra e Mar Guarda-Beleza, patriarca do clã em Salvador, descobriu, por exemplo, que seu bisneto era afeito às poesias quando leu o comentário do dia 23 de março de 1962 e orgulhou-se: “Cada homem do mundo/Cada mania chata que só vendo/Seu Celestrino assovia andando/ Seu José chora chovendo”. Com Dona Teresinha de Assumpção Duna Beleza foi a mesma coisa. A simpática senhorita leu um breve adendo referente à manhã de 16 de outubro de 1959 e chorou apaixonada. Dizia, no pé da página: “Meu Senhor, só tenho oito anos e Teresinha não gosta de mim”.

Após o lançamento de seus diários, Guarda-Beleza conseguiu um emprego na Light baiana. Era carregador no almoxarifado e tinha acesso à centenária biblioteca da companhia. Foi nessa época que o jovem conheceu a literatura do mundo. Leu “Os cabritos”, do boliviano Guadalajara Nuñes, “Rei D’África na Terra do Brasil”, do consagrado escritor nigeriano islamizado Mazi Atutu e “Tenho sono”, do suíço-americano Donald Gunnpemntauer. As conseqüências do seu mergulho nos livros estrangeiros são facilmente apontadas em seu segundo livro, uma novela: “Pedro Vaz caminha só”, de 1974.

Conquistando espaços no mundo literário enquanto organizava pastas e arquivos na companhia de luz, Guarda-Beleza foi chamado no final de 1975 a integrar um grupo de raciocínio formado por cavalheiros nada recomendáveis da capital baiana. As reuniões do Cheiro de Pó ocorriam sempre às sextas-feiras, num prédio abandonado na parte baixa de Salvador. Alguns integrantes do grupelho levavam seus escritos semanais e os liam para os outros, em clima de sarau e confraternização. As leituras eram seguidas de uma breve discussão acerca do valor literário do texto e de seu potencial comercial e artístico. Todos brindavam quando a obra tinha valor e quando não tinha também, por que queriam mesmo era brindar. O contato com o fervoroso mundo do beletrismo inconseqüente e alternativo trouxe a Guarda-Beleza uma revelação. Sua obra não seria eco do que já havia sido feito e era considerado bom. Ele escreveria, sempre, a partir da pior idéia e do pior texto para chegar ao ruim perfeito.

O primeiro trabalho de Guarda-Beleza focado nessa filosofia foi “Amputaram o pé do moleque”, de 1979, e foi lançado assim que o escritor pediu demissão da Light para dedicar todo o seu tempo aos livros; para lê-los todos e escrevê-los todos, pensou, precisaria de tempo. De sobra ele teve, pois lançou menos de seis meses depois, em dezembro de 1979, “Levanta o braço e diz eu sei”, até então, seu maior sucesso comercial e artístico. “Esse livro me dá vontade de ir ao banheiro o dia todo, só para lê-lo enquanto cago”, disse informalmente, à época, o crítico Jurema Meuamor, do periódico “A Capital”. É uma antologia de contos nada convencional. São, ao todo, quinze textos, todos eles tratam do mesmo tema: a sabedoria; mas contam histórias de gente estúpida, ignorante e pusilânime.

Guarda-Beleza chegou em São Paulo pela primeira vez em julho de 1980. Não se assustou com a cidade, desde pequeno temia o mato e o barulho da espingarda. Nascera urbano, e sabia disso. Mais do que violenta e feia, São Paulo significava para ele uma coisa organizada, com muitas ruas e avenidas, porém, com um só mapa. Na ocasião, ele fora convidado a conhecer um sebo no Jabaquara cujo orgulhoso proprietário jurava ser o único que vendia suas obras da Bahia pra baixo. Ele passou duas semanas na cidade e, quando voltou, já voltou com um livro coçando nas mãos.

Ele até tentou agilizar o processo de criação do romance, mas logo notou que esse livro não poderia ser escrito com a mesma inspiração dos outros de sua vasta obra (reunida, à época, na antologia "O verão é a estação mais quente do ano, o inverno a mais fria, tanto o outono quanto a primavera são os dois mais ou menos"). Esse novo livro demoraria, no mínimo, 25 anos para ser escrito e deveria conter, em menos de 365 páginas, o pensamento de um ano-universal. Um ano que representava, para Guarda-Beleza, todo o tempo do mundo. Era isso que ele carregava debaixo do braço em Itabaiana. (continua... claro)

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17.1.05

A onda da revolução

O ano de 1968 não foi particularmente feliz na então dividida capital alemã Berlim. Protestos marcados pelo líder estudantil Rudi Dutschke (1940-1979) sacudiam a cidade.

Organizações inspiradas no marxismo e consolidadas em ações terroristas floresciam ali e em toda a Europa. Barricadas e sangue abundavam em nome de uma revolução popular, liderada por setores da intelligentzia e da universidade. O Velho Continente eclodia em hormônios e em energia.

Ainda que o momento histórico fosse propício a tantas manifestações naquele interminável mês de maio, rondava na Alemanha desde muito antes um homem marcado pela humilhação do pós-guerra. Pela vontade de inovar e trazer novas ondas ao combalido, embora ativo, pensamento de esquerda.

Um homem de muito longe do Portal de Brandemburgo, ávido para rever as idéias de Karl Marx sem se render à coqueluche do maoísmo chinês, que trazia a Revolução Cultural. Um homem que nascera em 1946, na simpática cidade litorânea de Bremerhaven, ao noroeste do país. Seu nome era Andreas Stefan Waldner.

Também conhecido como Surfy Waldy, por seu amor às praias e ao surfe, ele abandonou a engenharia e a poesia para se dedicar a plantar a primeira semente de uma nova forma de luta pela igualdade socialista.

Um dos principais ideólogos teutônicos pós-nazi-fascismo, Waldner não se fez conhecer além das fronteiras alemãs e buscava a confluência do pensamento brianwilsoniano com o ideário marxista. Foi daí que floresceu uma concepção completamente nova de mundo.

Segundo ele, a revolução libertadora, ao contrário do que diziam os socialistas de então, não surgiria nem nas abarrotadas cidades e tampouco entre os famélicos dos campos de todos os países: ela tomaria o poder vinda do litoral.

A lógica de Waldner era simples. Para ele, as cidades costeiras reúnem condições melhores para se chegar ao centro do poder. Utilizando-se de uma intrincada cadeia lógica hegeliana, Surfy afirmava que campo e cidade se contrapõem de forma inexorável e que a síntese dos dois se encontra nas localidades costeiras, de população intermediária e material razoável para uma empreitada exitosa. Uma espécie de revolução das camadas médias, conforme disse ele em palestra aos alunos da Feuerneu, em agosto de 1970.

A idéia de Waldy no campo prático era aproveitar a falta de engajamento das pessoas desses lugares e cooptá-las para a causa, estimulando um sentimento de não-pertencimento às categorias definidas pelo marxistas como lugares de onde uma revolta poderia sair e tomar o poder. Aí se percebe a influência da psicologia social de Erich Fromm no trabalho de Andreas.

A surpresa do pensamento de Waldner arrebatou algumas tribos germânicas no noroeste do país, muitas delas insatisfeitas com os visitantes hamburgueses que lhes consumiam as belas reservas naturais em troca de uns poucos marcos.

Waldner convenceu os locais sobre a necessidade de se organizarem para libertarem suas consciências dos vínculos com os burgueses, para depois estender os ganhos a todo o resto da sociedade, inda mantida cativa do poder econômico.

Um obstáculo, no entanto, se entrepunha. Depois de escrever “A Onda da Libertação”, Waldy foi convidado a iniciar uma guerrilha, como seu líder intelectual. A oratória arrebatadora era garantia de novos adeptos. O que lhe atrapalhava era a narcolepsia.

Aos 22 anos, na tomada da Ilha de Flugel, um território inabitado a dois 2kms de Bremerhaven, Waldner sofreu mais de meia hora no mar após um ataque dessa terrível doença. Decidira cruzar as águas como se fora uma ritual de amadurecimento, como se passasse a ser um homem também de ação a partir dali.

Três enfermeiras o resgataram nas proximidades da ilha. Uma delas se tornaria sua esposa por 15 anos, até Waldner não mais voltar de um ataque de sua terrível e fragilizadora condição.

Fato é que aquele dia de natação marcou o primeiro passo de Waldner à organização de uma Intifada Litorânea, como gostava de chamar seu movimento.

Seria esse o título de sua segunda obra, publicada em 1971, na qual o pensamento marxista se confronta com o álbum Pet Sounds, do grupo norte-americano Beach Boys. Marx e Wilson continuavam a ser as maiores referências do surfo-revolucionário. (continua)


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27.12.04

Meias palavras, ações completas

"T pod deix tu orig, ma a orig nun pod deix a t"

(Didier Laframboise)

Não é recente a idéia de que meias palavras bastam aos bons entendedores. No entanto, foram poucos os homens que levaram a concepção às últimas consequências.

Um deles é o literato e monarquista franco-polinésio Didier Laframboise (1793-186?), pioneiro ao levar o "mei pala ba" a todos os cantos do arquipélago localizado no meio do Oceano Pacífico.

Depois de sair de Marselha se dizendo-se um dos representantes legítimos de Atua Fafine, o Deus criador polinésio, e percorrer os umbrais de toda a Europa, Laframboise aventurou-se a desbravar a Oceania. O Novíssimo Mundo se apresentava.

O auto-proclamado representante de Fafine o fez logo após a ascensão de Carlos X ao trono, com a restauração da dinastia dos Bourbon e a queda dos simpatizantes de Napoleão do poder. A monarquia francesa rapidamente se encantou com a fleuma arrebatadora que vinha do jovem poeta e redator dos editais do novo governo, o qual defendia com ardor. Desbravador. Magnânimo. Original, embora nem sempre compreensível.

Laframboise, naquele mesmo ano, viu-se no topo do mundo. Ou ao menos perto dele. Seu melhor amigo, o ultranacionalista Jules Armand de Polignac, foi indicado a ministro chefe do Rei. A Grande França que os monarquistas sonhavam estava perto. Faltava o além-mar.

E foi aí que Laframboise viu sua nova chance de se aproximar do poder. Mas não de forma torpe. Ele queria influência, onde quer que fosse. Por isso, escolheu desbravar o Novíssimo Continente. Sabia que a tarefa só podia ser sua.

Assim foi. Financiado pela Coroa, Laframboise navegou 143 dias em uma barcaça de nome "Le Watterloo" e desembarcou em Ua Huka, ao noroeste do Taiti. Logo contou com a admiração dos locais, que o reverenciaram por compreenderem parcialmente o que ele dizia com suas meias palavras, semelhantes ao idioma da região. Sentiam-no como um guia, enviado pelos mares. Rapidamente se fez popular.

Sorte não parava por aí: Laframboise chegou ao destino em 9 de outubro de 1829, dia do aniversário do monarca. O rei demonstrou gran regozijar com a notícia, dois meses depois, quando a ouviu do mensageiro que trouxe "Le Watterloo" de volta. Quase pediu um decreto para homenagear o desbravador, mas o redator estava de folga, o que inviabilizou a empreitada.

Não se pode interceder, no entanto, pelo fato de que isso tenha mudado o destino de Laframboise na Polinésia. O combinado era um retorno em dois anos. A falta de coordenadas da região, no entanto, impediu o resgate do brilhante homem e de sua tripulação. Homens que não mais quiseram ser resgatados. Sabiam que tinham um papel histórico para com aquela gente simples, meio tosca talvez.

Ouviam o guru poeta, que respondia sempre: "Ten temp e ten pacie. On nã exis alm, dev exis u ling e u estim a am!", escreveu ele na primeira de suas obras, chamada "Diar d Ua Huka, a Jorn Se Retor". Com a persistência de Laframboise, o livro se tornou obra de referência para os habitantes da ilha, que também passaram a conhecer o papel, as escolhas e mesmo o próprio conceito de livro.

O esforço libertador por meio do conhecimento era o início de uma jornada desconhecida que mostrasse àquelas pessoas a noção de tradição moral sem corromper a originalidade libertária da qual eram dotados. (Continua)

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10.12.04

Es la economaquía, Dummkopf!

Poucos notaram o sorriso de soslaio no rosto do boliviano e futuro economista Tupac Athaualpa de la Cruz (1916-1996) quando o intelectual alemão Mortiz Schlick (1882-1936) caiu morto com um tiro no peito, desferido por um ex-aluno insatisfeito com as considerações do pai do positivismo lógico a respeito de um ensaio que escrevera. Pudera.

Naquele corpo de menino indígena, viver e estudar na cidade onde se reunia a nata da intelligentzia européia não era uma benesse. Era uma ofensa para a qual só havia refúgio nos livros que escrevia e ficaram no fundo de suas gavetas até serem descobertos há seis anos, pela ex-amante de seu filho Evo.

Tupac não foi um gênio reconhecido em vida, tendo ele passado a maior parte de seus dias como um obscuro bibliotecário em Graz, em terras austríacas. Logo aos 22 anos, aquele que seria anos mais tarde considerado o principal nome da economia boliviana foi arrancado do bairro mais rico de Cochabamba e mandado à Europa, por não aceitar as ordens de seu pai, homem averso à idéia de ter um filho revolucionário.

Os problemas vinham desde os 15 anos do rapaz, que já defendia uma concepção econômica que o acompanhou até a morte: a economaquia, derivada da titanomaquia da mitologia grega.

Para o pensador, a economia mundial deveria ser baseada em fortes choques, de capitalismo, de estatismo, de confiança e de dúvida sucessivamente, com vista de se atender ao máximo de interesses o possível, em uma intrincada cadeia lógica hegeliana. A depressão de 1930 e a incipiência do pensamento keynesiano só reforçaram as crenças do rapaz, que ria dos pobres norte-americanos se acotovelando em filas de pão.

Para ele, aquele estado de coisas só apresentava uma via para a salvação: "Es la economaquía, estupido!", costumava dizer naquele que era seu principal chavão, segundo sua biografia não-autorizada "Os Passos do Terceiro Tupac", do jornalista Matheus Pichonelli.

Tupac pensava ser de melhor aplicação em alguns momentos o sistema friedmaniano, de robotização dos índices que regem os agentes econômicos. A sua genialidade e ponderação, no entanto, depois rumavam às idéias de Espinoza, segundo quem a economia deve ser sempre subordinada à política, a maior das artes - pregava a centralização do poder e a limitação do raio de ação dos agentes populares.

Então tornava-se bolivariano. Depois liberal. Mais tarde, anarquista. E tudo com coerência impar, fruto de sua imensa capacidade de rever conceitos e ajustá-los a uma realidade cada vez menos perene e mais intangível. Tupac não aceitava ser refém da obscuridade, mesmo em uma Áustria que sempre lhe foi alheia. Tinha luz própria e desdenhava dos "dummkopfen" que o ignoravam.

Quando Schlick foi morto, o descendente incaico, cujo nome é uma homenagem ao maior herói daquele povo, não mostrou nada do seu poder de insuflar e arrebatar mentes e corações, como fazia quando era líder estudantil e sindical em sua terra natal - época de sua vida ainda pouco clara, dada a falta de documentos históricos do Departamento Nacional de Movimentos Populares, localizado em Sucre. Sabe-se apenas que Tupac se sentia prostrado a utilizar sua oratória em alemão e mesmo em redigir no idioma teutônico, apesar de dominá-lo, bem como fazia com o quíchua e o papiamento.

Foi então que veio o Anschluss e a economaquia Tupac começou a se refinar. Pouco passava a sobrar do menino que aos 12 anos via seus vizinhos ingerindo pálidas folhas de coca, enquanto seus pais o incentivavam a fumar o refinado rapé. Tupac já era feito homem e exibiria seus dotes intelectuais de forma inequívoca assim que o Terceiro Reich se instalou na outrora bela Viena. (continua)

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8.12.04

Crítica de uma razão impura

Crítica de uma razão impura

"Euskera! Bizikidetza eta Bakearen Pedagogia Euskal Herrian gaur egun!" (Nossas língua e cultura! Educar a todos é fundamental para a convivência e a paz no País Basco!)

Joaquín Beriguenstain (1879-1914)


Joaquín Beriguenstain é, antes de tudo, um basco. Apesar de se saber muito mais sobre ele por conta da tradicionalmente oral cultura daquela região, abrangida por Espanha e França, poucos escritores podem se dizer capazes de utilizar regionalismos para simbolizar dramas tão universais quanto fez "El Txaxi", em seus 35 anos de vida.

Desde o início da disposição em se consolidar uma identidade nacional basca, esse paladino da palavra não indo-européia peregrinou como um mouro para difundir o idioma e a cultura "euskera" nas regiões mais inóspitas da Europa e do Norte da África.

Relegado ao esquecimento, bem como Euskadera Ferrero (1693-1745) e Henri Batasuna (1843-1893), esse homem esguio, fino no trato, segundo contou um parente espanhol de minha avó Lazinha, e de feições levemente nórdicas ajudou a minimizar a secular influência árabe no norte da Espanha. Ele assim fez em sua querida e católica Navarra, apesar de tudo indicar que ele tenha nascido em Sán Sebastian, além de ter sido o maior pregador da independência de sua província natal.

Para isso, o literato, que passara sua juventude inclinado a fazer o curso de Direito, mas desistiu por desapego às leis e amor à Justiça, não media esforços. Filho de um importante empresário da indústria de laticínios, fazia questão, desde seus 22 anos, de escrever e imprimir seus livros em basco e iorubá, com o principio que guiou sua existência: educar os mais fragilizados.

Conta-se que Beriguenstain seguiu da Argélia ao então Congo Belga, hoje Congo-Brazzaville, para distribuir seus textos, lê-los em praça pública e tentar incitar a população local a se rebelar contra a exploração européia. Foi assim que surgiu seu livro mais conhecido, "You May", concebido como um escárnio da língua inglesa e cuja data da primeira impressão se desconhece. Segundo minha avó, um conto traduzido do teatrólogo ucraniano Anton Tchekov (1860-1904) vinha junto do livro de Beriguenstain.

Não há confirmação oficial de que nada disso tenha acontecido, até porque a história de Beriguenstain sobrevive no boca-a-boca, e não em relatos de livros e grandes documentos. Beriguestain falava com desenvoltura, ao que parece, quatro idiomas: espanhol, inglês, basco e iorubá.

Isso sucitou a interpretação da zombaria com a anglofonia no título de "You May", que poderia significar "Tu maio", e não o aparente "Tu podes", uma vez que os africanos justificavam a maior tendência dos colonizadores à violência no quinto mês do ano em virtude da posição do sol.

Existe margem para explicações ainda mais inquietantes sobre o sentido do título. Fernando Vives, um biólogo que fala iorubá, me informou que "You May" pode se tratar de uma palavra sibilante no idioma africano com "Iyê", pronunciada com a extensão da última letra.

O léxico significa "mãe" - de onde sai a vida - e ainda é próxima de uma outra palavra do iorubá cuja tradução é algo como "prisão da qual se pode sair uma ou duas vezes, mas nunca uma terceira". Com grande sensibilidade, segundo o relato de um tio-avô, Beriguenstain inverte a relação colonialista, o que será retomado pelo escritor árabe Tayeb Salih em sua obra "Tempo de Migrar para o Norte".

O colonizado passa a ser o colonizador, sem a mesma violência dos europeus, mas sim com amor, educação, compreensão e aceitação do outro. Jeffrey Marshall, um soldado do Império Britânico à caminho da Nigéria, desiste de seu idioma por amor a uma princesa tribal africana, a bela Kalijah, que passava por Marrocos depois de uma viagem à Espanha.

O militar, que avistara a bela africana - chamada de "A Princesa Pobre", sem sequer uma carruagem digna de seu título de nobreza - em uma barcaça atravessando o Estreito de Gibraltar, a encontra em Casablanca e, fascinado, se dispõe a ser escravizado por Kalijah. A negra aceita Marshall, contanto que ele aprenda sua língua.

Depois que isso acontece e o inglês busca iniciar uma relação física com Kalijah, mas ela impõe que sua cultura também deve ser aprendida e estudada pelo europeu. Marshall hesita, reclama e aceita o desafio. Até que Kalijah, depois de o inglês se humilhar e chorar diante dela pela primeira vez, aceita o homem e seu renascimento como um africano. Ela se torna a mãe dele - a sua amada Iyê.

Do lado de baixo do Equador africano, o livro deixou marcas indeléveis, também por ter sido o ápice de uma carreira que acabou poucos anos depois com a morte do escritor, por quem houve choro e rituais que uniram a todos - hutus, tutis, árabes e negróides.

Mas se Beriguenstain teve de desencarnar, o mesmo, no entanto, não aconteceu com o desejo pelo pan-africanismo/pan-basquismo, ainda resistente e ativo com as nuances humanistas e iluministas trazidas por um dos maiores representantes de sua cultura e de seu tempo.